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Gestão das cidades deve priorizar interesse público

Publicado em: 11 de dezembro de 2018

Maria Fernanda Ziegler  |  Agência FAPESP – O mundo está se urbanizando e não é de hoje. A expectativa é que, até 2050, 75% da população mundial esteja vivendo em cidades. No Brasil, estima-se que, em 2030, mais de 90% da população será urbana. Isso faz com que os desafios das cidades, como crescimento desordenado, saneamento, trânsito, poluição, déficit habitacional, tornem-se centrais para o entendimento do mundo.

No Brasil, a migração para as cidades atingiu seu auge na década de 1970, quando aproximadamente 17,4 milhões de pessoas se mudaram para os grandes centros urbanos. Nos anos 2000, esse volume de pessoas caiu para 6 milhões. Embora arrefecido, o movimento migratório continua nos dias de hoje e aumenta o inchaço das cidades.

“Se São Paulo fosse uma pessoa, seria uma senhora de 464 anos obesa que cresceu mais que sua estrutura permitia. Teria artérias entupidas por trombos metálicos de quatro rodas, bronquite crônica por poluição e insuficiência renal, com diarreia aquosa em seus rios. Além disso também teria diabetes, por usar energia de forma perdulária, e Alzheimer, por esquecer o que foi dito e feito nas gestões anteriores”, disse Paulo Saldiva durante o programa Ciência Aberta, uma parceria da FAPESP e da Folha de S. Paulo, no dia 4 de dezembro. Saldiva é professor titular da Faculdade de Medicina e diretor do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP).

Também participaram do programa Marta Arretche, professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM) – um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPIDs) financiados pela FAPESP, e Alberto Augusto Eichman Jakob, coordenador do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (Nepo-Unicamp). A mediação do debate foi feita pela jornalista Sabine Righetti.

“No Brasil, é preciso que haja a primazia do interesse público na gestão das cidades para que não exista tanta desigualdade entre as cidades brasileiras e as cidades dentro de uma só cidade. A construção de novas residências foi priorizada, porém, o poder público não controla essa questão em termos de planejamento e burocracias estatais”, disse Arretche.

Jakob ressaltou que o crescimento desordenado das cidades acarreta segregação. “Essa segregação está no acesso aos serviços, em ter água todos os dias em casa, escola, oportunidades de trabalho, acesso à internet, casa e acesso a financiamento”, disse.

“O nosso parlamento abdicou de gerir a cidade e cedeu espaço para incorporadoras e outros atores. Isso fez com que não fossem aplicados os planos diretores. Uma das consequências é que cada vez mais as pessoas precisam morar mais longe e perdem em média 93 minutos de deslocamento em São Paulo, por exemplo”, disse Saldiva.

Arretche afirma que isso faz com que a população se encontre separada por muros invisíveis. “São criados desertos de serviços nas cidades. Há separação entre as oportunidades de trabalho e os espaços para residência”, disse.

No entanto, a coordenadora do CEM ressalta que a situação não é inevitável. “O problema está menos relacionado no que diz respeito aos serviços e mais às oportunidades de trabalho. Mas descentralizar o emprego não é trivial. Requer investimento descentralizado”, disse.

Sobre os problemas de trânsito e poluição, Arretche comentou que a bicicleta não vai substituir os outros meios de transporte, pois são grandes os deslocamentos feitos pela maioria da população.

“Há boas razões para que o sistema de transporte incorpore a bicicleta. Por outro lado, é difícil pensar que a bicicleta seja a solução. É preciso investir em transporte público, porque temos que levar em conta que mais de 50% da população se desloca mais de 12 quilômetros por dia. É preciso pensar em um sistema mais integrado, com bicicletários nas estações periféricas e opções de outros modais”, disse.

Mapa da Desigualdade

Saldiva destacou que a desigualdade na Região Metropolitana de São Paulo causada pelo crescimento desenfreado se nota principalmente em três questões de saúde: obesidade, saúde mental e câncer.

“Isso pode ser percebido ao comparar a expectativa de vida de cada bairro paulistano. Depois que sai do centro, a população vai perder 1,5 ano de vida a cada estação de metrô. Índices como esse comprovam que existem várias cidades em uma mesma cidade”, disse.

Os dados mencionados por Saldiva têm como base estudo recente, divulgado pelo Mapa da Desigualdade. Realizado pela Rede Nossa São Paulo, o estudo calculou a relação entre a soma das idades ao morrer pela quantidade total de óbitos em todas as idades, ocorridos em determinado ano e localidade. Verificou-se, por exemplo, que a expectativa de vida no Jardim Paulista é de 79,4 anos, enquanto no Jardim Ângela é de 55,7 anos.

“A cidade fica tão grande que cada um tem a sua. Quando você enxerga pessoas baseado no [aplicativo de trânsito] Waze, é porque alguma coisa está muito errada. Essa segregação e a não criação das chamadas redes de afeto formam o caminho mais rápido para a doença mental. Por isso, temos níveis tão altos de ansiedade e depressão na cidade de São Paulo”, disse Saldiva.

Arretche elencou também a violência como outro ponto importante para os altos níveis de ansiedade e depressão. “As periferias das cidades brasileiras são extremamente violentas. Não só as periferias. Os níveis de estresse são comparáveis aos de países em guerra civil. A taxa de pessoas que presenciaram violências é comparável à da guerra civil”, disse.